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Breve comentário do filme Corpo e alma (Título original: Teströl és Lélekröl / Direção: Ildiko Enyedi / 2017)


Por Luciana Andrade – membro do Studio de Psicanálise

Contém spoiler

A história se passa dentro de um filme, mas poderia acontecer com qualquer um de nós. Na verdade, é o que queríamos que acontecesse conosco: um encontro de amor perfeito. O filme conta a história de um homem e uma mulher, Endre e Mária, que trabalham em um matadouro. Um lugar inóspito para o amor? Sem dúvida. O matadouro é apenas o lugar do cotidiano consciente de cada um. Há um outro lugar para além desse: os sonhos.

Cada um, esse homem e essa mulher, isolados e solitários em suas casas, tem a mesma rotina: saem do trabalho, vão ao supermercado, seguem para as suas casas, preparam o jantar, jantam, assistem TV e preparam-se para dormir. Uma rotina milimétrica, que pode se repetir com qualquer um de nós. Ao dormirem, repito, cada um em suas casas, eles sonham. Sonham todas as noites. Sonham o mesmo sonho, ambos dentro de um único cenário: uma floresta deserta e gelada, uma imagem idílica, em que somente os dois estão na cena. São dois cervos, um macho e uma fêmea, a própria representação deles. Isso segue durante um tempo que ninguém sabe. Ele não sabe que ela sonha o mesmo sonho que ele. Ela também. É no trabalho, nesse lugar inóspito, cheio de sangue, em que todo dia cada um executa o seu trabalho e executa um animal, que eles se conhecem e se deparam com essa realidade em forma de fantasia. Seria a realidade dentro de uma fantasia ou a fantasia disfarçada de realidade? Eis o inconsciente representado pela arte.

No trabalho ocorre uma investigação técnica. Uma psicóloga entrevista cada funcionário, individualmente. Endre é o primeiro a ser entrevistado. Ele sente-se inibido pela psicóloga, que demonstra um ar investigativo, porém, nada fora da realidade que a situação está montada. Ela está ali apenas para colher informações e preparar o relatório. A muito contragosto, ele relata o sonho que teve na noite anterior. Dá poucos detalhes, enquanto a psicóloga tenta coletar qualquer informação possível, com muito esforço para manter a paciência e o profissionalismo. Enquanto ele relata, ela anota, com ar enfadonho de que está apenas começando uma série de entrevistas/interrogatório com os funcionários da empresa. Por último entra Mária e responde milimetricamente, com uma memória que nunca falha, a todas as perguntas. A pergunta sobre o sonho é protocolo. Está lá, no questionário da psicóloga. Ela terá que fazer a mesma pergunta que fez para todos anteriormente. Cada funcionário pode contar os seus sonhos, cada um mais banal ou enigmático que o outro. Mária também relata o seu sonho. Detalhes que se conectam aos pontos soltos e frívolos do relato anterior de Endre. Não tem erro: é o mesmo sonho. Não precisamos de um detector para verificar a veracidade de cada sonho. O relato do sonho, já dizia Freud, é a chave para o acesso ao inconsciente. Porém, como duas pessoas podem ter o mesmo sonho?! Este é o mistério do filme. Não o desperdicemos!

Por fim, a psicóloga, exausta e irritada, dá fim ao caso, saindo magoada por não terem respeitado o seu trabalho. Será que eles combinaram contar o mesmo sonho? Por quê, com qual intenção? Ao serem interrogados pela psicóloga, eles ficaram tão surpresos quanto ela. Endre e Mária têm o mesmo cotidiano banal e solitário. Terão também o mesmo sonho? Como em poucas cenas do filme, Mária demonstra um brilho nos olhos. Será aí a possibilidade de um contato visual e físico sem tanto estranhamento?

Dá-se início a uma bela amizade, unidos por um sonho. É um ar de mistério e fantasia do começo ao fim.

Lembremos que ambos são solitários. Ela talvez mais do que ele. Ele é o diretor financeiro, que fala com todos e mantém um bom vínculo. Ela, inspetora de qualidade, não fala com ninguém, ignora e é ignorada pelo outro, mas não ignora as normas de qualidade e, se for preciso, é capaz de rebaixar a classificação das carnes por conta de míseros dois milímetros a mais de gordura. Mária fala somente com uma pessoa: o seu terapeuta, que a acompanha desde criança e que agora tenta, sem sucesso, encaminhá-la para um terapeuta adulto, para demarcar ali a existência de uma mulher, de corpo e alma. Uma alma que tenta fugir da realidade ou lida com ela da forma mais concreta e milimétrica possível. Evitar o contato físico e buscar ter contato visual aprendido e treinado em casa é a forma que ela tem de viver nessa realidade para não se sentir engolida por ela, o que seria uma angústia mortífera. Mária, talvez, esteja mais na realidade do que na fantasia. Entre a fantasia e a consciência há um espaço indefinido, intrínseco, em que a realidade dos fatos é vista e interpretada conforme os recursos psíquicos de cada indivíduo.

Esse homem e essa mulher têm sonhos idênticos, como se fossem uma única pessoa. O sonho é o elo entre eles. A fantasia entra no cenário para fazer a diferença. Ele, com suas fantasias de um homem velho, acometido por um problema motor que deixa o seu braço esquerdo sem movimentos. Ela, uma jovem mulher, ainda no encontro com esse corpo cheio de curvas, que tenta estabelecer contato físico e afeto com o outro. Ela luta contra esse empecilho, buscando formas para manter contato. Então, o terapeuta lhe diz que a música é um instrumento poderoso para termos acesso às nossas emoções. É a forma que temos para tocarmos em nossa memória. Ela tem uma memória intocável. O desafio é como tocar os sentimentos com as suas memórias. Como tocar a pele do outro sem sentir-se invadida, como se um feixe de espinhos a espetasse por todo o corpo?

Ela tenta. Entra em uma loja, escuta dezenas de CD´s, até que a vendedora indica uma música que fez parte de suas memórias. Mária tenta se conectar ouvindo a música que despertou tanta emoção na vendedora. Ela pensa: será que vou sentir a mesma a emoção que a vendedora da loja sentiu? Escuta What he wrote, de Laura Marling. Ela continua sem expressões faciais. Parece que a música não a toca, como se nada a atingisse, nem uma música com uma letra de amor.

Mais à frente veremos como essa música é a sua morte e a sua salvação. Escuta a música, ao preparar-se para morrer e, no mesmo instante, recebe uma ligação. É ele, ela pensa, pois é o único que tem o seu telefone. Nessa cena, a música para. Há um silêncio para que escutemos intensamente essa cena, num momento de amor intenso deles.

Maceió, 7 de agosto de 2022.